Making-of do clipe Jeremias
Entender o processo de como um filme é feito é uma das melhores escolas para quem quer trabalhar na área, eu pessoalmente sempre aprendi muito lendo e assistindo aos making-of de outros diretores. Então aproveitando o lançamento do clipe Jeremias que o Gabriel Iglesias acaba de lançar no seu canal VEVO, resolvi compartilhar a enorme jornada e o processo por detrás. Foi uma jornada de mais de 6 meses de trabalho para completar esse trabalho e algumas surpresas no caminho– principalmente contar com a Company 3 (companhia que faz a correção de cor do Ridley Scott e vários filmes ganhadores do Oscar). Escrevo em detalhe todo o processo para quem tiver interesse em saber o que aconteceu por detrás das cenas de Jeremias.
Se você gosta de vídeoclipes não deixe de conferir no meu blog o post- A Brief History of The Music Video aonde dou um panorama geral na história do video clip!
Como tudo começou
Há muitos anos acompanho o trabalho do Biel e sempre rolou uma conversa para gravarmos um videoclipe. Anos depois, há 3 anos já morando em Barcelona estava com uma viagem planejada para o Brasil e fui conversar com ele para ver quando iria sair seu novo cd e vermos a possibilidade de gravar algo no pouco tempo que passaria no Brasil. Mas qual foi a surpresa e a sintonia que dentro de um mês ele estaria vindo para Madrid mixar seu CD Pedra em Carne com Carles Campi (o produtor do Jorge Drexler) e queria realizar algo comigo aqui na Espanha.
Com pouco orçamento e só cinco dias livres para gravarmos algo aqui em Barcelona, o desafio estava lançado– como desenvolver melhor a visão artística do Biel através de um videoclipe?
Pessoalmente eu acredito que um bom videoclipe vai além de representar a música visualmente. Os vídeoclipes que mais me marcaram foram aqueles que trouxeram uma nova camada de interpretação, aqueles clipes que uma vez visto transforma seu entendimento da música e se torna impossível desassociar a música do clipe.
Nessa fase inicial, a confiança entre o diretor e o músico é essencial. No começo de outubro de 2015 o Biel me enviou o que já tinha do seu CD (as faixas gravadas na sua casa antes da mixagem e da masterização) e perguntou que músicas eu achava que dava para trabalhar. Secretamente já tinha alcançado um dos meus alvos, estava louco para ouvir seu novo CD e aqui estou com todos os arquivos para ouvir em loop! Ouvi com a Eloá (minha esposa) durante dias a fio sem parar o CD, e estávamos hipnotizados pela sonoridade que o Biel tinha criado. Aliás, a Eloá como vou discutir um pouco mais à frente foi essencial para toda a realização do clipe. É essencial ter alguém que vai te jogar a realidade dura se as ideias são boas ou não e te ajudar a desenvolver elas da melhor forma possível.
Convencendo os outros da sua ideia
Depois de vários dias ouvindo e discutindo com a Eloá as músicas que mais nos chamaram a atenção para realizar um clip foi Jeremias, Eternidade e Pedra. Porque? É um pouco difícil explicar o porque, mas para mim está relacionado ao que falei acima, da importância de um clipe trazer uma nova camada de entendimento. Essas três músicas foram as que achei que poderia contribuir de alguma forma com meu trabalho como diretor. Com algumas ideias na cabeça o próximo passo é colocar elas a prova de fogo com a Eloá. Nessa fase fazer algo para Eternidade foi derrubado por questões logísticas, é a maior música do CD com quase 8 minutos de duração e com o baixo orçamento e pouco tempo de gravação que tínhamos seria impossível realizar algo.
Com essas duas músicas, Jeremias e Pedra(que não vou falar muito nesse texto), vem uma das partes mais difíceis e cruciais do trabalho de um diretor. Convencer as outras pessoas da sua ideia. Até o momento não tinha ainda conversado com o Biel, nossa última conversa foi antes dele me enviar o CD e agora tinha que apresentar essa ideia de fazer praticamente um curta-metragem sci-fi com ele vestido como uma astronauta.
Como desde de 2010 tenho trabalho em uma produtora dirigindo comerciais para grande agências e marcas brasileiras, algo que aprendi é a importância de como apresentar suas ideias. Antes de qualquer conversa com o Biel preparei uma apresentação similar as que geralmente mostro para as agências e clientes em trabalhos comerciais:
- Introduzir o conceito.
- Referências de como seu trabalho será visualmente.
- Esqueleto do roteiro.
- Como será a arte: Figurino, locações, etc.
- Orçamento.
- Questões técnicas como equipamento que vai usar, tamanho da equipe, duração de gravação, etc.
É difícil explicar imagens e sentimentos que só existem na sua cabeça então tudo que você puder preparar para melhor mostrar o que você imagina ajuda as outras pessoas a entenderem o que você quer alcançar. Desde o começo tive a confiança o Biel e felizmente quando apresentei esse conceito ele amou e já comecei a fazer as preparações.
Pré-produção
Tendo somente 5 dias de gravação ter tudo preparado para saber exatamente o que fazer e aproveitar bem cada dia é essencial. Qualquer diretor sabe que a pré-produção é o período mais crucial para sair ou não um bom filme. Nesse período o papel do diretor é de fazer todas as perguntas imagináveis que poderiam ocorrer durante a gravação e se preparar para o pior. Como tive que produzir o clip além de dirigir foi nessas três semanas antes da gravação que tive que arrumar todas as questões logísticas (alugar equipamento, carro para locomoção, ver exatamente aonde vai ser gravado, perguntar acerca das licenças das locações, horários, etc.)
A pré-produção do diretor
O primeiro passo foi finalizar o roteiro do clipe, tinha apresentado um esqueleto mas antes de seguir adiante precisava ter segundo por segundo o que iria acontecer. Abri meu bom e velho Celtx (tentei usar a nova versão online mas a integração com a parte de produção e storyboard deixou a desejar) e fui escrever. Mas o clipe não tem nenhuma fala, para que precisa de roteiro???? Antes de fazer o storyboard gosto de escrever para que as ideias fluem mais rápido, vou escrevendo como vejo cada locação, o enquadramento da câmera, como o astronauta vai andar, sua posição, sua expressão, etc.
É nesse processo que a forma realmente cria corpo e cada detalhe do filme tem que ser resolvido– o que faria sentido para o personagem? Em que mundo ele está inserido? Quais são as regras desse mundo? Como isso afeta seu comportamento? Para responder tudo isso contei com a ajuda da Eloá Vasconcelos. Íamos passear juntos pelas montanhas atrás de casa e passávamos horas discutindo todos os pequenos detalhes do clipe. Desde cada ação que ele tomaria, cada reação, porque o mundo estava desolado, o que aconteceu para se tornar assim, etc. Cada vez que uma peça se encaixava ia correndo escrever e atualizar o roteiro.
Com a roteiro pronto passei para o storyboard, ter um artista para o storyboard em uma produção de baixo orçamento seria impossível mas é tão importante que vale a pena você mesmo fazer nem que seja boneco de palito. Com um período tão curto para gravar fiz o storyboard para levar comigo nas gravações e mostrar para o Diretor de Fotografia exatamente o que eu queria em cada cena.
Um dos meus medos seria não ter suficiente cena para preencher o 6 minutos que dura Jeremias. Então além do storyboard levei todas as imagens para o Premiere e fiz uma maquete de como seria o filme sobrepondo as imagens à música e vendo como sairia. Geralmente cenas em videoclipes duram no máximo 2 segundos, mais que isso e precisa estar acontecendo muito movimento na cena para que as pessoas não começam a ficar cansadas. Comento mais sobre isso na parte de pós-produção, mas realizei então uma maquete do filme com as cenas do storyboards e mais algumas cenas que usei nas referências para ter uma ideia de como seria a dinâmica do filme e se precisaria pensar em mais cenas.
Geralmente, meu trabalho como diretor durante a pré-produção já teria terminado. Tenho o conceito, o roteiro, o storyboard, a maquete, cada ângulo e cada cena preparada, a arte já foi aprovada e as locações também. Mas como tive que produzir terminar a parte artística foi só o começo para uma série de desafios que vieram depois e algumas surpresas na produção influenciaram muitas cenas que tinha preparado.
A pré-produção do produtor
Com tudo “pronto” agora o passo era resolver todas as questões técnicas logísticas. A primeira coisa foi conseguir o equipamento para filmar. Estava buscando uma câmera que fosse rápido montar e operar já que tínhamos pouquíssimo tempo em cada locação, então a RED Scarlet estava fora de questão. Inicialmente estava querendo uma Blackmagic Cinema Camera 4k devido a sua possibilidade de gravar em RAW dando flexibilidade na correção de cor e por seu baixo preço de custo para alugar. Felizmente ela não estava disponível e a locadora fez uma incrível oferta para ficarmos com uma Sony FS7 e o kit da Zeiss Primes. Essa surpresa teve um enorme impacto no videoclipe pois a FS7 grava até 120fps em Full HD o que possibilitou fazermos todas as cenas de slow-motion no final. O único problema é que nem eu nem o Felipe Abreu (diretor de fotografia) tínhamos usado essa câmera, e apesar dela ser relativamente simples o jeito que ela trabalha com a cor (seu sistema de Slog3) é bem diferente das outras câmeras do mercado.
Sabendo que câmera iríamos usar fui correndo mudar algumas coisas no roteiro para aproveitar o slow-motion da Sony FS7 e fazer alguns testes. Eu queria que todo o clipe fosse mais lento que o normal, mas não queria um super slow-motion no final. Eu queria que a velocidade do movimento do astronauta fosse parecido com o do clipe do Bon Iver — Towers.
Não sabendo como alcançar o resultado que queria fui correndo para os fóruns do Creative Cow perguntar como alcançar e então surgiu a resposta. Porque não fazer uma engenharia reversa no clip do Bon Iver? Baixei o clip, joguei no Premiere, cortei o clip nos pontos de cada corte e fui aumentando a velocidade para entender em quantos quadros por segundo ele foi filmado. A resposta desse processo todo foi que o diretor Nabil trabalhou variando os quadros entre 30 a 48 quadros. Voltei ao roteiro então para pensar em qual FPS (quadros por segundo) iria filmar cada cena.
Locações
Desde o começo em paralelo com todo esse processo fui buscando as locações para o clipe. Vivo em Barcelona e apesar de conhecer pouco a Catalunha já tinha visto algumas fotos de locais muito interessantes aqui na região. A ideia era buscar lugares desolados que poderiam passar a impressão de um mundo abandonado. Foram dias buscando pelo google encontrando pouca coisa, até que surgiu a ideia de ir vendo toda a região pelo google maps. Literalmente dei um zoom no google maps e fui andando por toda a região norte da Catalunha buscando formações geográficas rochosas e desoladoras. O resultado não poderia ter sido mais incrível! Entre as praias da Costa Brava, as montanhas de Rupit e a província de Girona poderíamos gravar montanhas pela manhã e logo ir correndo para as praias filmar durante a tarde. Esse processo manual teve grandes surpresas como descobrir as abandonadas escadarias da cidade de Portbou.
Uma das outras grande surpresas de locação que influenciou todo o clipe foi descobrir o memorial do Walter Benjamin em Portbou. O teórico alemão fugiu dos nazistas para cidade de Portbou no começo da segunda guerra mundial e acabou morrendo em um dos hotéis desse pequeno povoado na fronteira da Espanha com a França. O memorial que está na cidade além de carregar um grande simbolismo para mim (o Walter Benjamin é um dos principais teóricos que utilizo na minha pesquisa acadêmica) foi o achado perfeito para fazer a transição do astronauta saindo para o mundo.
Visto de fora o memorial é simples, uma entrada para uma escada que desce até o mar. Porém quando a câmera é apontada de dentro para fora vemos um túnel para o céu. Mais uma locação que acabei descobrindo pelo Google Maps e fomos a cegas uma manhã gravar e acabou sendo extraordinário.
Devido a correria de ter que arrumar toda a parte de produção e direção só fui calcular a distância entre todas as locações uma semana antes e logo de cara deu para ver que era impossível realizar todas as locações em 5 dias. Tive que cortar duas cenas do roteiro e mesmo assim andamos 2000km em 5 dias para gravar tudo somente dentro da província de Girona.
Arte
O conceito do clipe dependia da roupa do astronauta. Em 2012 eu tinha comprado a roupa de um vendedor russo no ebay, a roupa originalmente é o que os pilotos russos utilizavam para pilotar aviões ultra-sônicos. Comprei para um projeto paralelo que tinha mas que acabei nunca usando e que era muito pequeno para mim. Corremos um grande risco de não caber do Biel também e só fomos descobrir se realmente servia nele uma semana antes– era o tamanho perfeito!
Com a roupa resolvido agora tinha que correr atrás do capacete, das luvas e das botas. A Eloá assumiu a direção de arte e foi correr atrás do que faltava. O Biel tinha uma bota de mais de 80 anos que era da cor que precisávamos e junto com seu assistente Augusto eles foi correr atrás da luva nas lojas que vendem roupa vintage em Barcelona. A dificuldade então era encontrar esse capacete russo da década 70, não bastava qualquer capacete tinha que ser o modelo correto para que se encaixasse corretamente na roupa. Encontramos no ebay alguns mas eles estava na Rússia e ia demorar para chegar até aqui fora o custo que estava muito alto. Com muita procura achamos uma loja de equipamento militar que trabalhava com antiguidades em Barcelona! Conversando com eles conseguimos um bom valor para alugar o capacete só pelos dias da filmagem. O único problema é que essa roupa foi feito para conectar no suplemento de oxigênio do avião ultra-sônico e sem conectar um tanque oxigênio nos tubos não tinha como respirar uma vez que o capacete estava fechado!
Tudo pronto para a gravação. Agora era “Luz, câmera, ação!”
Produção — as gravações
Sabendo do tempo que iria demorar para testar e configurar a câmera que era nova tanto para nós planejei somente uma cena nos bosques de La Fageda, uma região ao norte de Barcelona, aproximadamente umas 2 horas de viagem. Separei a manhã para testarmos a câmera e para resolvermos outros problemas, como a roupa do Biel. Que levou quase duas horas para a Eloá e o Augusto conseguirem arrumar da primeira vez já que tiveram que puxar todas as cordas que permitem que toda a roupa se comprima ou expanda dependendo de quem usa. Já nesse primeiro dia ficou claro que não daria para o Biel ficar tirando a roupa entre as cenas, o pessoal da arte teria que arrumar ele de manhã e ele então passaria o dia todo com essa roupa. Tivemos algumas cenas bem interessantes como o Biel dirigindo com a roupa de astronauta, várias vezes tivemos que comer em restaurantes ou abastecer o carro e até caminhar pela cidade com a roupa. Ajudou que gravamos logo depois das festas de Halloween :)
Alguns outros problemas que não estava previsto até então foi descobrir que a roupa tem espaço para usar uma fralda geriátrica (pilotos supersónicos também necessitam ir ao banheiro afinal) mas como nós não precisávamos usar um a roupa ficava muito estranha na parte traseira, mas nada que mudar alguns planos e sempre evitar filmar o Biel de costas não resolveu. E o outro mais grave era o capacete que deixava entrar nada de ar já que o sistema toda da roupa era para ser encaixado em algum fornecedor de oxigênio. A solução apesar de não ter sido muito elegante era que o Biel tinha que prender sua respiração enquanto gravamos as cenas, inicialmente não tivemos muitos problemas, mas em cenas mais longas e até nas cenas finais que ele está correndo por várias vezes ele quase chegou a desmaiar.
Organizei para que começar a gravar algumas cenas simples e as cenas da corrida final nesse primeiro dia. A lógica foi aquecer um pouco e já partir para as cenas mais difíceis do clip para já garantir elas. Eu prefiro sempre gravar as cenas cruciais e mais difíceis logo no começo quando a equipe está disposta e animada, com a intensidade das gravações e as poucas horas de sono a tendência geralmente é ir diminuindo a produtividade a cada dia que passa.
Tirando uma queda minha de cara no chão com a câmera enquanto corria atrás do Biel para as cenas em slow-motion e o carro quase ter virado ao tentar manobrar em cima de um barranco o primeiro dia foi um sucesso! Garantimos várias cenas em slow-motion para o final da corrida e as duas cenas principais da virada emocional que ocorre no meio do clip– o olhar dele de tristeza ao não encontrar o que estava procurando e logo em seguida o olhar para a ave simbolizando a esperança.
Desde o princípio nas conversas com a Eloá escolhemos que o melhor caminho seria trabalhar com o Biel para atingirmos uma atuação emocional porém sútil. O desafio era conseguir refletir as emoções interiores do astronauta de uma forma que fosse natural. Quando trabalho com não-atores busco mostrar o que quero da cena em todos os mínimos detalhes– para onde olhar, como trabalhar cada parte do corpo, como andar, as expressões, etc. Se possível mostro exatamente o que quero fazendo as expressões para que seja bem compreensível. O Biel desde o primeiro dia mostrou um grande talento para a atuação, compreendia bem o que estava sendo pedido e foi realmente surpreendente a facilidade com que assumiu o personagem. Acho que passar o dia todo vestido como o personagem, quase desmaiando por sufocamento várias vezes e realmente tendo que correr e dar o máximo de si fisicamente ajudou ele a trazer a superfície os sentimentos mais profundos desse mensageiro em um lugar inóspito!
A Eloá aqui também leva os créditos por muitas das sutilezas da atuação no clipe, tendo participado no desenvolvimento do conceito e com um olhar tenaz, vários detalhes foi ela que lembrou e ajudou o Biel em algumas das cenas mais emocionais– a primeira vez que ele abre os olhos, o andar e a respiração na Cala Canyet entre muitas outras cenas.
Na região da Catalunha o outono é uma época que o clima muda muito. Nos 5 dias de gravação só faltou nevar e as temperaturas variaram de um dia nas montanhas em meio a chuva e a 2º C para um sol forte nas praias que gravamos a 20ºC. Essa variação toda acaba influenciando muito nas cores da imagem e juntando isso com os ventos fortes que fizeram a câmera tremer quando não devia deram um bom trabalho na pós-produção. Nessas condições o trabalho do diretor é conseguir manter a equipe unida e motivada para os desafios de cada nova cena que é preciso gravar. Uma dica que lembro ter lido é sempre manter todo mundo alimentado! Pode parecer algo simples mas principalmente em filmes de baixo orçamentos aonde a equipe não está ali por acreditar na sua visão e no projeto manter a moral elevada é uma das funções essenciais do diretor/produtor!
Devido a uma boa pré-produção as gravações ocorreram tranquilamente. Já tinha calculado que iríamos passar por volta de 6h por dia se locomovendo entre as locações, então ter o storyboard e saber exatamente que cena precisávamos deu tempo de gravarmos tudo que precisávamos e ainda sobrou um pouco para oportunidades que não tínhamos planejado, como descobrir uma incrível locação porque erramos o caminho.
Ps.: Lembrei agora que algo que me ajudou muito foi usar filtros ND degradados no Matte Box. Como quase toda a iluminação do filme foi luz natural para compensar a luz do céu dependíamos de vários ND Soft Edge para conseguir manter detalhes por toda a cena (usamos ND 0.3 / 0.6 / 0.9 / 1.2).
Durante todo as gravações a cena mais difícil foi a cena inicial dos reflexos no capacete do astronauta. O plano inicial era alugar um estúdio fotográfico em Barcelona para gravarmos a cena com um fundo infinito preto e usar programas de mapping projection para projetar as imagens só na área do vidro do capacete. Conseguimos o projetor mas o calendário do estúdio não foi compatível com os horários das locações, o jeito era fazer em casa.
Na noite do segundo dia fomos fazer os testes da projeção no capacete e não funcionou. Estava querendo evitar ao máximo usar VFX para isso na pós-produção então minhas opções eram tentar o projetor ou tentar usar uma televisão em frente ao capacete para captar os reflexos. Mas usar o projetor resultava em um reflexo muito fraco e pelo espelho do visor ser convexo mesmo colocando uma televisão de 42" em frente ao capacete a imagem saía muito pequeno.
Depois de várias horas tentando tivemos que deixar para o dia seguinte pois teríamos que acordar cedo para a próxima diária. No dia seguinte fui tentar com a televisão mas como também não deu certo tive que buscar uma outra estratégia. A cena teria que ser feita em VFX mas para dar mais veracidade tive a ideia de colocar a televisão embaixo do capacete para que as cores das imagens refletisse no capacete em sincronia com as cenas do vídeo que tinha preparado para ir no visor. Dessa forma quando na pós-produção fosse incluído as imagens no visor o capacete teria em sincronia as mesmas cores. Deu tudo certo no final com excessão de um problema na Sony FS7 que usando o Slog3 em cores escuras deixa com muito ruído, o que me obrigou a procurar redutores de ruído na pós-produção, algo que na última versão do firmware já foi resolvido.
Pós-Produção
Edição
Com tudo filmado queria logo já começar a editar para ver que forma ia tomar mas antes de qualquer coisa tem que preparar os arquivos. Porque preparar os arquivos? O ideal é sempre trabalhar com os arquivos originais mas no meu caso meu computador não aguenta trabalhar com o formato que filmamos– XAVC-I 4k Slog3.cine 10bit com um bitrate que variava entre 240mb/s até 600mb/s dependendo do FPS da cena, resumindo, cada arquivo de 1 minutos de vídeo tinha de 1gb a 6gb.
Então antes de qualquer criei proxies de todas as cenas em Prores 422 LT em 1080p para poder editar livremente. Como ando bem desapontado com a Apple e precisava integrar After Effects, Photoshop, Speed Grade e ter a flexibilidade de enviar o projeto dos arquivos para outras companhias optei por trabalhar no Premiere. Aqui vai de cada um, geralmente uso o FCP X para trabalhos menores ou que requerem uma entrega mais rápida e o Premiere quando sei que preciso que outras pessoas colaborem com o projeto e integrar ele em workflows de outras produtoras. No final das contas a plataforma que você escolhe não faz tanta diferença, no máximo vai dar mais dor de cabeça se você precisa compartilhar com outras pessoas mas não há nada que não dê para resolver.
Não sou muito fã de editar, sempre que é algo comercial prefiro trabalhar com um editor de confiança já que os clientes geralmente pedem muitas pequenas correções que acabam consumindo muito tempo. Mesmo trabalhando com meus editores gosto de colocar a mão na massa e acompanhar de perto o que está acontecendo, nesse caso resolvi eu mesmo editar o material. Levei aproximadamente 3 meses editando 5 horas por dia para chegar em um corte que gostei, foram mais de 15 versões até enviar um corte para o Biel que estava contente e mais 5 versões até arrumar muitas pequenas coisas que me incomodavam.
Meu processo de edição é simples. Primeiro eu vou take por take cortando só a parte da atuação e colocando tudo em uma timeline. Depois vou nessa timeline e separo só o que realmente me interessa e com esse material vou trabalhando a timeline principal e duplicando ela para uma nova versão cada vez que quero fazer alguma mudança drástica.
Como esse clipe tinha bastante VFX em paralelo fui fazendo o que podia no After Effects para ter uma ideia de como estaria saindo as cenas, acabei não usando essas cenas depois mas foi importante para ter uma ideia da narrativa final.
Correção de cor
O papel da correção de cor em um filme é importantíssimo! Primeiro é ele que harmoniza as cores entre as diversas cenas gravadas em diferentes dias, depois ele dá todo o tom do filme e por último ajuda a chamar atenção para alguns detalhes que de outra forma poderia passar desapercebido. Desde o começo eu já tinha um conceito que queria para como seria a correção de cor do filme, uma das referências para a terra devastada foi o filme Prometheus do Ridley Scott e estava uma correção que trazia ele como inspiração mas mantendo uma proximidade com o personagem. Queria tons quentes para a pele do personagem e uma tonalidade distópica para o mundo.
A correção de cor para quem é novo nesse mundo é um dos passos mais importantes na pós-produção nos dias de hoje. Antigamente não tinha muito que podia ser feito, a cor dependia em que tipo de filme 35mm você filmou e em qual filme 35mm ele foi impresso para a projeção no cinema. O diretor junto com o DP (diretor de fotografia) escolhiam a dedo que película 35mm ia ser usado pelas suas distintas qualidades e como reproduziam certas cores. Um exemplo bem simples é que historicamente os filmes da Kodak tem uma gama de cores mais vivas e puxadas para o amarelo enquanto os da Fujiflim puxam mais para o esverdeado (isso é bem por cima, cada marca tem inúmeros filmes cada um com uma personalidade).
Até pouco tempo atrás não tinha muito o que ser feito até com os arquivos dos filme digitais, eles já viam mais ou menos com um look feito e uns toques aqui e ali bastavam para sair bom o filme. Porém todas as câmeras modernas de cinema para guardarem mais informações das partes claras e escuras da cena gravam uma imagem flat, sem muitas cores e para quem não conhece bem sem vida. Na verdade o que o sensor está fazendo é condensando o máximo de informações no sensor para que na correção de cor essa informação toda possa ser selecionada e usada. Há críticas em relação a tudo isso mas vou deixar isso para outra hora.
No caso de Jeremias gravamos tudo em Slog3 cine.gamut, a configuração mais “flat” possível de uma Sony Fs7. Porém como logo percebi a correção de cor não seria nada fácil devido a grande gama de climas e horários que gravamos, umas cenas estavam bem alaranjadas por causa do horário do sol, outras estavam quase sem cor porque estava nublado e cinzento e outras foram gravadas no sol do meio-dia! Tentei eu mesmo fazer a correção de cor usando o Speed Grade que vêm junto com o Adobe CC. O sonho seria usar o Davinci Resolve mas meu computador não aguentou o tranco.
Li horas sobre correção de cor e vi inúmeros tutoriais no youtube até ter um pouco uma ideia do que queria fazer. Abri o Speed Grade e passei 3semanas tentando harmonizar as cenas do filme sem nenhum sucesso, primeiro tentei com LUTs mas logo vi que eles não estavam ajudando e muitos acabavam destruindo mais a imagem (artefatos como banding, etc.) então fui para o processo manual e apesar de consegui realizar bem algumas cenas foi impossível fazer tudo ficar parecido ou com o mesmo sentimento.
Quase 1 mês nesse processo percebi que a correção de cor é uma arte e que certamente só ter passado horas lendo e vendo vídeos no youtube não estavam resolvendo o problema para esse clip. Resolvi buscar ajuda profissional. Participo de vários fóruns online sobre todas as áreas técnicas de cinema e uma deles é só de coloristas, fui na seção de classificados e postei uma prévia do filme sem correção de cor, expliquei que era baixo orçamento e esperei tristemente para ver se alguém responderia (confesso que acho que ninguém ia responder). Dentro de algumas horas comecei a receber várias propostas desde de coloristas profissionais que trabalham com séries como o House of Cards desde coloristas novatos que estavam buscando aumentar seu portfólio. A chave acho que foi ter um filme interessante que poderia ser usado posteriormente no portfolio do colorista.
Com tantas respostas criei uma tabela com o orçamento que cada pedia, o link do portfolio de cada artista e em que pé estava a comunicação com cada um. Os orçamentos variavam bastante, os coloristas profissionais geralmente cobram por hora e terminam um filme de 6 minutos em 4 a 6 horas dependendo do que precisa ser feito enquanto vários coloristas que estavam crescendo estavam oferecendo um preço fechado por pacote.
Depois de vários dias recebi um email de um colorista do Company 3, a empresa que fez a correção de Prometheus e The Martian! Fora todos os filmes que eles fizeram que ganharam o Oscar. O email deles foi bem legal, eles tinham amado o filme e perguntavam quanto de orçamento que eu tinha. Por mais legal que eles eram eu sabia que sempre estaria fora do meu alcance para esse trabalho mas enviei um email agradecendo o interesse, falando que eu tinha um baixíssimo orçamento e por curiosidade perguntando quanto que eles cobrariam normalmente para quem sabe um dia poder trabalhar com eles. Por incrível que pareça eles aceitaram o orçamento que tinha enviado e assim, de repente, tinha a empresa que fez a referência que tinha usado colorindo o Jeremias!
O processo de trabalhar com um colorista profissional foi novo para mim, tive que exportar um Notch EDL e enviar o arquivo do filme em ProRes 4444 (foram 40gb o arquivo final). Enviei o que queria e depois de uma 3 revisões estava com o filme lindamente colorido, o impossível de harmonizar todas as cenas foi alcançado. Só para ter uma ideia do trabalho do colorista algumas cenas antes e depois.
VFX
A produtora de Chicago que fez a correção de cor pediu para enviar os arquivos originais sem nenhum efeito especial ou títulos e somente usar as transições que eu tinha certeza que iriam entrar no filme final. Então assim que recebi o arquivo de volta conversei com várias pessoas e o time de VFX da Academia de Filmes assumiu o papel de refazer todos os efeitos que eu tinha manualmente feito no After Effects.
Como trabalhar no AE não é bem minha área eu primeiro tentei fazer os VFX sozinho mas o resultado não ficou tão bom quanto esperava. Através de tutoriais e ajuda em fóruns tinha conseguido usar o Mocha para rastrear o movimento para depois mapear o reflexo das imagens que seriam projetados no capacete e também rastrear a pedra na cena que tinha que inserir o escrito. Mas mesmo tendo passado semanas trabalhando, certamente ter ajuda de profissionais agregariam muito ao trabalho feito até então. Quando recebi a resposta que a Academia de Filmes ia ajudar nos VFX tirei da timeline tudo que tinha trabalhado até então e conversei com eles explicando exatamente o que queria através de uma lista detalhada com cada cena que iria VFX e o que esperava.
Tivemos alguns problemas que o Fábio e Rogério prontamente resolveram em minutos o que eu levaria horas para fazer– o maior deles que desde que filmei o reflexo do capacete tive que mudar algumas cenas das imagens que seriam projetadas no capacete e precisavam resyncar as tonalidades do reflexo com o do capacete. Um outro foi falha minha, como filmei na Europa o filme todo estava em 25p enquanto o filme que editei para ser projetado no capacete estava em 24p. Pode parecer que um quadro não faz muita diferença mas quando você precisa que as imagens troquem no exato quadro que muda o reflexo do capacete estar tudo em sync é uma das coisas mais importantes para passar a impressão da realidade.
Para o escrito na pedra (deixo em aberto o mistério do que está escrito já que ele é a chave para a narrativa do clip) pedi a ajuda do diretor de arte Rodrigo Sganzerla que trabalhou as falhas e as fendas da rocha que filmamos para criar a sobreposição do escrito. Uma vez com o escrito a cena foi rastreada para fazer com que o escrito se mexesse de acordo com a câmera e a imagem foi inserida por baixo de uma máscara que foi recortada do astronauta.
A outra cena que teve que ser toda trabalhada no VFX foi a do sinalizador nas montanhas, na pré-produção tinha investigado a possibilidade de usar um sinalizador de verdade mas como pela lei espanhola usar um sinalizador náutico sem ser em casos de emergências é crime tive que novamente pedir ajuda o VFX para a cena do reflexo no capacete e do sinalizador.
Últimos passos — Design dos títulos e granulação
Com a correção de cor e agora com os efeitos especiais no lugar faltava dar os últimos detalhes do filme. Eu queria fazer uma homenagem para os filmes de ficção científica dos finais dos anos 60 e 70 e através de uma extensa pesquisa encontrei alguns sites que especificamente analisa as fontes usadas em filme de ficção científica. Depois de alguns testes entre as fontes que remetem aos filmes dessa época encontrei a que queria e trabalhei em cima dela para não ficar tão contrastada e perfeita e mais parecida com o que se vê em projeções de 35mm no cinema (um leve blur que vem da telecinagem).
Uma vez com o título introdutório mais algumas horas testando o fade-in que queria e o fade-out e ajustando para que coincidisse exatamente com a saída do Biel.
Os títulos finais foi o mesmo processo com a pequena exceção que para reforçar um pouco mais o conceito inclui de leve as estrelas no fundo para que desse mais um movimento e posicionasse melhor toda a história do filme.
Export da Master e a compressão do Youtube
Com o filme já pronto veio mais uma surpresa. Os codecs de compressão do Youtube são horríveis e destroem a imagem. Tonalidades que na versão original passagem de uma cor para outra imperceptivelmente começaram a dar banding e granulação, movimentos bruscos produziram artefatos de imagem que antes não existiam. A solução? Infelizmente uma perfeita não tem mas em geral tem duas formas que o pessoal tenta melhorar.
1- Fazer o upload na maior qualidade possível já que o Youtube vai ter que comprimir de qualquer forma que eles comprimam o maior arquivo que eles aceitam. Um ProRes 422 com o maior bitrate que puder enviar. Nesse caso o arquivo que enviei tinha 8gb (o master original em ProRes 4444 tem 40gb só como uma referência)
2- Tentar comprimir você mesmo em H264 utilizando algo como o Handbrake e escolher as melhores opções possíveis, como fazer o keyframe a cada 2 quadros, etc.
Entre os exports, uploads e testes passei dias vendo como o Youtube tratava cada arquivo e realmente a segunda opção não ajuda muito já que o youtube vai pegar seu lindo h264 que você passou horas construindo e destruir de qualquer forma. Em geral se você tem o tempo, a velocidade e a banda o melhor é sempre enviar o ProRes 422.
Ps.: Isso é para o Youtube, o Vimeo tem todo um outro esquema que nesse caso não seria muito útil pois o vídeo principal tem o VEVO e Youtube como a plataforma principal.
Resumindo tudo
Acima procurei detalhar o máximo possível todos os passos desde a concepção até a finalização de um videoclipe. Muitas vezes só vendo o resultado final a impressão que se passa é que o processo todo fluí tranquilamente, algo que não poderia estar mais longe da realidade. Como diretor procuro sempre manter a equipe totalmente integrada, e entregando tudo que tenho para o processo espero o mesmo da equipe e do músico também :)
Felizmente essa parceria com o Gabriel Iglesias é uma das primeiras de muitas que vêm por aí. Se tudo der certo esse ano já estará saindo mais para quem quiser poder novamente acompanhar a jornada. Qualquer perguntas podem ir mandando pelos comentários que tentarei responder o melhor possível.
Algumas referências para quem quer saber mais sobre os bastidores de cinema
Filmes:
Hearts of Darkness: A Filmmaker’s Apocalypse (1991)
Day for Night (1973)
Lost in La Mancha (2002)
Hail, Caesar! (2016)
Livros:
Easy Rider: Raging Bulls (Peter Biskind)
Rebel Without A Crew (Robert Rodriguez)
In the Blink of an Eye (Walter Murch)
Sites:
No Film School– www.nofilmschool.com
Every Frame a Painting– https://www.youtube.com/user/everyframeapaintingCinematography Database– https://www.youtube.com/channel/UCnw2-4hXY26-W2w9Ja9GBvw